Empresas por esse mundo fora estão a investir milhões em iniciativas de “transformação digital” – até o governo português tem um ministério da economia e da transição digital e uma secretaria de estado em exclusivo para esta temática – no entanto uma elevada percentagem destas iniciativas “teima” em não dar retorno. Este fracasso deve-se ao facto de as empresas porem “a carroça à frente dos bois”, como se diz na gíria popular, focando-se exclusivamente numa tecnologia específica (por exemplo “necessitamos de uma estratégia para tirar partido da machine-learning”) em lugar de efetuarem o trabalho, certo que é árduo, de enquadrar em primeiro lugar esta mudança na sua estratégia global de negócio.
Um estudo recentemente efetuado (2019) tendo por base a opinião de Administradores, CEOs, Directores e Gestores de Topo, detetou que o risco relacionado com a transformação digital é a sua preocupação número 1; não obstante, cerca de 70% das iniciativas de transformação digital não atingiu as metas pretendidas, resultando em recursos desperdiçados. Cabe então aqui a pergunta, porque é que algumas iniciativas de transformação digital são extremamente bem sucedidas, enquanto outras (uma larga maioria) falham de forma rotunda?
Fundamentalmente porque a grande maioria das tecnologias digitais disponibilizam funcionalidades que possibilitam elevados ganhos de eficiência e de intimidade com o cliente, o entanto se as pessoas não tiverem a mentalidade certa para a mudança e as práticas e processos atuais da sua organização tiverem imperfeições/ineficiências, as tecnologias digitais não irão fazer mais que ampliá-las.
Do estudo efetuado e da análise detalhada dos sucessos e fracassos, os seus autores retiraram 5 lições principais, as quais passarei a apresentar:
1 – Definir a sua Estratégia de Negócio antes de investir seja no que for
Os Leaders que ambicionam melhorar o seu desempenho organizacional através da utilização das tecnologias digitais, usualmente têm uma ferramenta específica no seu pensamento. Talvez: “A nossa organização precisa de uma estratégia de machine learning”. No entanto
a transformação digital deve ser orientada por uma estratégia de negócio mais abrangente.
Na Li & Fung (empresa global líder em supply chain e onde um dos autores deste artigo trabalha) os seus líderes desenvolveram uma estratégia a 3 anos para servirem um “marketplace” no qual as aplicações móveis são tão importantes como as lojas tradicionais (físicas). Eles escolheram focar a sua atenção em 3 áreas: velocidade, inovação e digitalização.
A Li & Fung pensou especificamente na redução de tempos de espera durante a produção, aumentar a velocidade para o mercado e melhorar a utilização de dados na sua cadeia de fornecimento global.
Após o estabelecimento destas metas, a empresa decidiu quais as ferramentas digitais que deveria adotar. Apenas na perspetiva de aumentar a sua velocidade para o mercado, por exemplo, a Li & Fung abraçou a tecnologia de design virtual e só esta aju- dou-os a reduzir em 50% o tempo entre o design e a preparação de uma amostra.
A Li & Fung ajudou igualmente os seus fornecedores a instalarem sistemas de rastreamento de dados para aumentarem a eficiência da sua produção e desenvolveu e disponibilizou o Total Sourcing, uma plataforma digital que integra a informação de clientes e fornecedores. O departamento financeiro adoptou uma abordagem similar e recentemente reduziu o tempo necessário à execução do fecho de mês em mais de 30%, aumentando desta forma a eficiência do capital circulante em cerca de 200 milhões de dólares.
Não existe nenhuma tecnologia que por si só entregue “velocidade” ou “inovação” como esta. A melhor combinação de ferramentas para uma determinada organização irá variar de uma visão para outra.
2 – Aproveitar os actuais colaboradores
As organizações que procuram transformações (digitais ou de outro género) frequentemente contratam um “exército” de consultores externos que tendem a aplicar soluções baseadas num modelo standard que serve para todas as situações, em nome das chamadas “melhores práticas”.
A nossa abordagem à transformação de uma organização passa antes por confiar e acreditar nas competências dos colaboradores internos – que são pessoas que têm conhecimento profundo acerca do que funciona e daquilo que não funciona nas operações que realizam no dia-a-dia.
O Município de Santa Clara na Califórnia (onde um dos autores deste artigo trabalha) fornece um excelente exemplo. O Departamento de Planeamento e Desenvolvimento estava a implementar uma iniciativa de reengenharia dos processos de trabalho com a meta de obter ganhos de eficiência e melhorar a experiência do cliente.
Inicialmente, consultores externos fizeram recomendações para o processo de aprovação de licenças, baseados no trabalho que eles próprios tinham desenvolvido para outras jurisdições, que tendiam para uma abordagem de implementação descentralizada.
Contudo, os colaboradores do atendimento ao cliente sabiam, suportados nas suas interacções com os residentes, que um processo mais unificado teria melhor aceitação. Por isso, Kirk Girard e a sua equipa adaptaram fortemente as ferramentas, processos, diagramas e componentes dos principais softwares recomendados, à medida que redesenhavam os fluxos de trabalho.
Como resultado, o tempo de atribuição de licenças foi reduzido em 33%. Frequentemente as novas tecnologias falham na melhoria da produtividade organizacional, não por causa de imperfeições da tecnologia, mas porque o conhecimento residente nos colaboradores internos foi esquecido ou subestimado.
3 – Desenhar a experiência do cliente partindo de fora para dentro
Se a meta da TD (transformação digital) é melhorar a satisfação do cliente e intimidade com o mesmo, então qualquer iniciativa deve ser precedida por uma fase de diagnóstico com contributo detalhado dos clientes. Os colaboradores do Departamento de Planeamento e Desenvolvimento do Município de Santa Clara realizaram mais de 90 entrevistas individuais a clientes em que pediram a cada um deles para descrever os pontos fortes e pontos fracos do departamento.
Adicionalmente, o departamento realizou sessões de focus groups durante as quais perguntaram a vários stakeholders – incluindo agentes, promotores, construtores, agricultores e instituições locais de relevo como a Universidade de Stanford – para identificar as suas necessidades, estabelecer prioridades, e classificar o desempenho do departamento. O departamento utilizou todo este contributo na definição da sua transformação.
Para responder aos pedidos dos clientes por maior transparência no processo de aprovação de licenças, o departamento decompôs o processo em fases e alterou o portal do cliente; os clientes podem agora acompanhar online o progresso dos seus pedidos de licenciamento à medida que eles vão evoluindo pelas diversas fases.
Para reduzir o tempo de processamento, o departamento re-configurou o software dos colaboradores por forma a que ele identifique automaticamente pedidos que estejam parados numa qualquer fase. Por forma a permitir apoio personalizado, o departamento deu autorização de acesso, aos seus colaboradores, ao quadro geral de controlo do fluxo de aprovação.
Os líderes das organizações tendem a assumir que a implementação de uma única ferramenta ou aplicação aumenta a satisfação dos clientes por si mesma. Contudo, a experiência deste departamento demonstra que a melhor forma de maximizar a satisfação do cliente passa frequentemente por fazer alterações de pequena monta a diferentes ferramentas em diferentes pontos do ciclo de funcionamento de um serviço.
A única forma de saber onde alterar e como alterar é por via da obtenção de contributos detalhados por partes dos clientes desse mesmo serviço.
4- Reconhecer que os seus colaboradores têm medo de serem substituídos
Quando os colaboradores de uma empresa percebem que a transformação digital pode constituir-se numa ameaça aos seus postos de trabalho, eles podem consciente ou inconscientemente resistir às mudanças, entrando no chamado estado de luto antecipatório.
Se a transformação digital acabar por ser ineficaz, os gestores da organização provavelmente abandonarão o esforço e os postos de trabalho dos colaboradores acabarão por permanecer inalterados (ou pelo menos será esta a sua linha de pensamento).
É então crítico que os líderes reconheçam esses medos e que enfatizem que o processo de transformação digital é uma oportunidade para os colaboradores actualizarem as suas competências e ficarem melhor preparados para o mercado de trabalho do futuro.
Um dos autores deste artigo (Behnam) foi coach de mais de 20 mil colaboradores de múltiplas organizações no contexto de processos de transformação digital (ele também prestou serviços de consultoria às organizações mencionadas neste artigo).
Ele frequentemente encontrou participantes que estavam cépticos sobre toda a operação desde a tomada de decisão inicial para avançar (os chamados opositores declarados ou velados). Para lidar com estes participantes ele desenvolveu um processo de dentro para fora.
Assim, a todos os participantes foi pedido para exa- minarem quais eram os seus contributos únicos para as organizações onde trabalhavam e depois para alinharem esses seus pontos fortes às diversas componentes do processo de transformação digital – as quais iriam ficar sob a sua responsabilidade, se tal fosse possível.
Este processo deu aos colaboradores o controlo sobre como a transformação digital se iria desenrolar, e posicionou as novas tecnologias a adoptar como os meios através dos quais os colaboradores de cada organização se tornariam ainda melhores a fazer aquilo em que eles já eram muito bons.
Na CenturyLink, onde um dos autores trabalha, a equipa de vendas tem vindo a considerar a adopção de inteligência artificial (IA) para aumentar a sua produtividade. Ainda hoje está por definir a forma como a IA deve ser implementada.
Recentemente, a equipa de vendas configurou à sua medida uma ferramenta de IA para optimizar o esforço de cada comercial por via da sugestão de quais os clientes a contactar telefonicamente, quando lhes telefonar e o que dizer durante a chamada numa dada semana. A ferramenta também continha uma componente de gamificação, o que tornou o processo de venda mais interessante.
Vernon Irvin, que acompanhou este processo pelo lado de dentro, observou que o processo de venda se tornou mais divertido, o que se traduziu numa melhoria da satisfação do cliente e num aumento de 10% nas vendas.
5- Trazer para dentro da sua organização a cultura das Start-up do Silicon Valley
As start-ups do Silicon Valley são conhecidas pelo seu processo de tomada de decisão ágil, prototipagem rápida e estruturas organizacionais planas.
O processo de transformação digital é por inerência pleno de incertezas: as mudanças devem ser efectua- das de forma provisória e depois ajustadas à medida das necessidades; as decisões necessitam ser tomadas de forma rápida; e os diversos grupos de colaboradores de toda a organização necessitam ser envolvidos.
Como resultado, as hierarquias tradicionais irão inevitavelmente atravessar-se no caminho deste processo e constituir um entrave ao seu desenrolar. É então melhor adotar uma estrutura organizacional plana que deverá ser mantida de alguma forma em separado do resto da organização.
Em iniciativas de transformação digital, a necessidade de agilidade e capacidade de prototipagem é ainda mais pronunciada do que em qualquer outro tipo de iniciativas de gestão da mudança, derivado à quantidade de tecnologias digitais que necessitam ser adaptadas.
Os líderes têm de decidir quais as ferramentas a usar, quais os fornecedores a escolher, que área de negócio beneficia mais com a mudança para aquela nova tecnologia, se a implementação da transição deve ser desencadeada por fases, e por aí em diante.
Frequentemente, seleccionar a melhor solução requer experimentação exaustiva em partes interdependentes. Se cada decisão tiver que envolver múltiplos níveis de gestão para avançar, erros podem não ser detetados e corrigidos de forma rápida. Para além disso, para determinadas tecnologias digitais, o retorno só ocorre após uma parte considerável do negócio ter mudado para o novo sistema.
Por exemplo, um sistema de computação na nuvem desenhado para agregar a procura global dos clientes pode apenas gerar dados analíticos úteis quando as lojas em diferentes países recolherem com regularidade o mesmo tipo de dados.
Isto requer a resolução das diferenças nos processos organizacionais existentes nas diversas regiões. Se os detalhes de como uma nova tecnologia irá ser utilizada é fortemente condicionada pelos colaboradores de um único país, eles podem não ter em consideração o potencial de existência de incompatibilidades.
Ao trabalhar com a Li & Fung, Behnam ajudou a criar 6 equipas multi-funcionais, cada qual composta por co- laboradores provenientes dos diferentes escritórios em Hong Kong, Grã-Bretanha, Alemanha e Estados Unidos.
Estas equipas lideraram diferentes etapas da transformação digital. Dado que a estrutura destas equipas era plana, eles foram capazes de apresentar ideias e obter de forma rápida o contributo de Ed Lam (CFO) e de altos responsáveis das diversas unidades de negócio.
Isto permitiu às equipas experimentarem novas ideias acerca da melhor forma de integração de soluções inovadoras aos níveis da estrutura de dados, processamento analítico e processamento robotizado.
Além disso, porque as novas propostas foram avaliadas por colaboradores de diferentes escritórios e diferentes funções, estas equipas foram capazes de antecipar problemas com a implementação e foram capazes de as resolver antes de a organização no seu todo adoptar as novas tecnologias.
A transformação digital funcionou para estas organizações porque os seus leaders souberam centrar-se nas questões fundamentais: eles focaram-se na alteração das mentalidades dos seus colaboradores, bem como dos processos e cultura organizacionais antes de decidirem que ferramentas digitais deveriam usar e como as deviam usar. O que os membros destas organizações visualizaram como um futuro possível para a sua organização guiou a escolha da tecnologia e não o contrário.
Rui Porteiro
Professional Coach ENG, MBA, HCMP, CBAP, PMP, PMI-ACP, SCT, ITIL