A Game Changer de julho de 2021 é dedicada à gestão da mudança, e em concreto aborda a revolução digital. O timing do tema foi oportuno, dado o excecional incremento do trabalho remoto nos últimos 2 anos, e da digitalização dos negócios e da sociedade, registado na última década. Transversal a quase todos os textos então publicados na revista, embora de forma menos visível, surge o tema da mudança cultural.
Talvez porque a poeira levantada pela tempestade pandémica comece agora a assentar, começa-se a perceber melhor as tendências de futuro nos planos da organização do trabalho e dos impactos da crise sobre os negócios e a sociedade. Um dos assuntos do momento é, precisamente, a mudança cultural. Este interesse traduz-se em três questões: como serão as culturas corporativas em ambientes de trabalho híbridos e remotos? Como se faz a transição entre diferentes matrizes culturais? E como se pode identificar e caracterizar a cultura de uma organização?
Responder detalhadamente a estas questões não é possível num texto que se pretende curto, pelo que nos parágrafos seguintes fornecem-se algumas pistas para refletir sobre as indagações ora assinaladas, começando por se definir cultura.
Cultura tem sido definida como um padrão partilhado de crenças e valores, que foi escolhido ou criado por um grupo, que serve para estabelecer os modos preferenciais de lidar com os ambientes exterior e interior do grupo, e que é transmitido para os novos membros como a forma aceite de pensar, agir e sentir. Daqui se pode concluir que cultura é algo que se tem, pois diz respeito aos valores, às crenças, e à linguagem. Mas é igualmente algo que se faz, no sentido em que se reflete nas ações e decisões humanas.
Do exposto, parece igualmente certo dizer que cultura vai fundo no espírito humano, tanto que não causa ofensa a ninguém escrever que cultura faz parte da identidade da pessoa. Define uma parte da pessoa: aquela que é partilhada com uma coletividade.
Assim, quando se fala de mudança cultural, não faz sentido excluir o indivíduo de tal processo, já que, sendo identitária, mudar culturas é mudar pessoas. Significa, também, que a pessoa é ao mesmo tempo o motor e o veículo da mudança cultural. Claro que por vezes se tem a sensação de se ser ultrapassado pela força das circunstâncias, ou seja, os acontecimentos aparentam esmagar as escolhas indivi- duais, e serem eles – os acontecimentos – a conduzir a mudança. Mas em boa verdade, até perante eventos gravosos, há indivíduos que, pela sua influência numa rede social (i.e., serem líderes), assumem um papel central no despoletar e/ou na direção da mudança. Os demais indivíduos propagam as decisões e escolhas, cimentando e consolidando a mudança nos valores e crenças partilhados. Em suma, mudança cultural diz respeito a todos.
Existem pelo menos três vias para mudar a cultura. A primeira é nada fazer, ou seja, adota-se uma postura passiva na mudança. O dinamismo de uma cultura significa que ela está sempre em evolução, alimentando-se das pequenas mudanças individuais acumuladas e partilhadas entre as pessoas dentro de um grupo.
A postura passiva é como estar num cais, a ver os navios a passar, sem o observador se aperceber que, afinal, também ele está a bordo de um desses navios.
A segunda via é a mudança induzida e controlada, como por exemplo a ocorrida através da educação, ou a associada a outras transformações, como a mudança tecnológica. A cultura nestes casos evolui mais ou menos suavemente entre gerações, o que torna possível ter mão sobre a direção e conteúdos da mudança nos valores e crenças do grupo.
Na metáfora marítima, o observador encontra-se conscientemente a bordo de um dos navios, e toma parte nas decisões referentes aos destinos possíveis da viagem.
E a terceira via é por mudança não controlada, resultado de crises profundas que abalam o grupo. Nestes casos, é imprevisível o desfecho no médio e longo prazos, e muito difícil compreender o fenómeno no seu todo. A pandemia constituiu um bom exemplo deste terceiro modelo de mudança, podendo, por isso, ser descrita como um evento do tipo cisne-negro.
Na imagem atrás apresentada, o observador e todo o navio são confrontados com uma violenta tempestade, que baralha os sistemas de navegação e introduz caos e desordem com desfechos inopináveis.
Apesar das diferenças entre as três vias, o desafio para quem tem que gerir as mudanças nas pessoas é muito semelhante, e pode resumir-se à questão “como se pode mudar o que se tem, se faz, ou se é, sem primeiro saber o que se tem, se faz, ou se é?”. A relevância desta questão advém do facto de nem todas as organizações saberem qual a sua cultura. Ou, posto de outro modo, apesar de não existir organização sem cultura, esta nem sempre é visível ou explicitada. Gerir e mudar uma cultura deve, por conseguinte, começar por se conhecer a cultura.
O mapeamento de culturas é tecnicamente possível, sendo o resultado final a caracterização da alma e do espírito da organização, ou seja, o que é que as pessoas realmente partilham sobre a sua empresa. Uma das técnicas mais recentes para mapear culturas corporativas é o culture canvas, que consiste numa aplicação do business canvas à gestão da cultura.
Tal como no seu irmão aplicável aos negócios, a elaboração do culture canvas está dependente da recolha de informação residente nas estruturas cognitivas e emocionais dos colaboradores, pelo que é através da linguagem e da interação entre pessoas que passa todo o exercício de construção do canvas. Atrás já se havia assinalado a centralidade da linguagem e da comunicação na cultura.
Existem variantes do culture canvas, aqui se expondo a essência do modelo de G. Razzetti, fundador e CEO da Fearless Culture, uma consultora em mudança cultural. No seu culture design canvas, Razzetti propõe três secções de análise, que se subdividem em blocos. Assim, a secção “comportamentos” inclui os modos operatórios associados à tomada de decisão, à condução de reuniões, e às normas
e regulamentos. A secção “emoções” inclui os rituais, o modelo de feedback, e a segurança percebida, ou psicológica. E a secção “mentalidade” inclui as prioridades, os comportamentos, os valores, e o propósito.
Aceda aqui ao Culture Design Canvas
O desenho do canvas deve começar pelos valores e pelo propósito (assinalados dentro do coração), que são, ao fim e ao cabo, a quintessência da empresa. No caso dos valores, trata-se de compreender as crenças fundamentais do coletivo, os padrões éticos de funcionamento entre colegas e com clientes, e os princípios que guiam os relacionamentos. No caso do propósito, trata-se de perceber a raison d’être da organização, o seu âmago, o seu espírito, o seu desígnio num contexto mais vasto e maior que o indivíduo. A questão a responder é poderosa, e elementar: porque existe esta organização?
A resposta à última questão do parágrafo anterior pode ser relativamente fácil. Mas na maior parte das vezes é difícil ou, quando é fácil para o fundador da empresa, pode ser difícil para os demais colaboradores compreender e partilhar a razão pela qual existe a empresa na qual trabalham. Nos novos modelos de trabalho híbridos e remotos é mais provável que o propósito da organização seja obscuro, assim como os seus valores e demais elementos culturais. Se assim for, pode ser urgente o mapeamento da cultura.
Jorge F. S. Gomes
Professor Catedrático ISEG, Lisbon School of Economics & Management