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5 de Julho de 2024

Recursos Humanos e Inteligência Artificial – O que nos reserva o futuro? – Game Changer 20

O século XX foi conhecido durante um bom tempo como “o século das invenções”. Não lhe tiremos o mérito, mas os primeiros 20 anos do século XXI já mostraram que a competição vai ser dura. O final do século passado viu a chegada do telemóvel e da internet. Essa combinação nos levou a avanços gigantescos. A capacidade de receber e-mails no celular e, logo em seguida, mensagens por aplicativos de chat, tornou tênue a fronteira, outrora bem marcada, entre trabalho e descanso.

O advento da pandemia trouxe de uma vez por todas o trabalho para dentro de casa. Em um ambiente de crise, o foco necessariamente dirigiu-se à continuidade dos negócios e não à gestão da mudança. A quantidade de desafios foi enorme: adaptar a morada para o trabalho remoto; lidar com toda a família em casa o tempo todo – cada um com seus afazeres e suas necessidades de privacidade, silêncio, acesso à internet etc.; levar segurança da informação a um ambiente residencial; cuidar da ergonomia dos funcionários. A lista é enorme.

Daryl Conner, em seu livro Managing At The Speed of Change, traz luz sobre a capacidade que cada pessoa tem de absorver mudanças. Essa capacidade varia para cada indivíduo e, se ultrapassada, leva a pessoa a apresentar sintomas disfuncionais, como alteração do sono, do humor e da produtividade, além de comportamentos inadequados, seja no trabalho, na vida pessoal ou em ambos. Na pandemia a capacidade de absorver mudanças foi ultrapassada por grande parte da população, levando a um surto de problemas de saúde mental e física, para além dos causados pelo COVID-19. Com a situação controlada do ponto de vista sanitário, as empresas foram decidindo qual regime de trabalho adotar. Algumas delas, talvez, sem se dar conta de que impunham nova mudança a quem ainda lidava com as consequências da recém-vivida sobrecarga de transformações. O importante era recuperar as perdas, aumentar as vendas, explorar as oportunidades que o pós-pandemia oferecia. Com palavras de efeito como resiliência e antifragilidade, mais carga foi colocada sobre os funcionários.

A escolha do regime de trabalho também é função do regime escolhido por clientes e parceiros, principalmente para os negócios do tipo B2B – Business to Business -, que prestam serviço a outros negócios. Não foram poucos os casos de empresas que escolheram um determinado regime para o pós-pandemia e precisarem fazer novas adequações em função das escolhas de outros stakeholders. Durante todo esse movimento de ida e volta coube às equipes de RH montar verdadeiras “operações de contenção de danos”, lidando com demandas de todos os tipos e com as consequências da sobrecarga emocional, sem esquecer do autocuidado. É um processo vivo e que ainda hoje está a desenvolver-se.

Refletindo a situação global, no início de 2022 a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu a Síndrome de Burnout na Classificação Internacional de Doenças. Essa nova doença, também conhecida como Síndrome do Esgotamento Profissional, é um distúrbio emocional com sintomas como: exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante. As equipes de RH ganharam uma ferramenta para diminuir a ambiguidade e lidar com gestores mais renuentes, que tendiam a achar que os funcionários estavam a ser indolentes. Por outro lado, foi preciso estruturar-se para acolher os funcionários que traziam problemas relacionados à saúde mental, estabelecendo processos, indicadores, evidências e todo o conjunto documental que propicia a necessária transparência e equidade de tratamento.

É neste cenário que recebemos a novidade da inteligência artificial – IA. A primeira consequência de seu surgimento, como costuma acontecer quando as mudanças não são geridas, é a insegurança psíquica. Mundo afora o fantasma da substituição de pessoas por máquinas assombra novamente os trabalhadores, principalmente os menos qualificados e os que estão a ponto de ingressar no mercado de trabalho. Se bem é verdade que esse fantasma nos visita há décadas, com vários rostos diferentes (a máquina a vapor, o computador, o autoatendimento), ele agora ameaça setores que nunca haviam sido ameaçados: é a contabilidade que vai acabar, é a advocacia que vai desaparecer, é o algoritmo que tem índice de acerto em diagnósticos melhor que o dos médicos.

Quem procura emprego esbarra com o fantasma desde o início do processo: não há mais o ritual de enviar o currículo para um recrutador, não há mais um humano do outro lado. As plataformas de recrutamento dominam o mercado e as há para todos os tamanhos de empresa. O candidato se afana a preencher um monte de informações, algumas vezes repetindo dados, ou tendo que voltar atrás nas telas ao dar-se conta de que a informação que inseriu num campo anterior era para inserir neste que apareceu agora. Plataforma por plataforma. A mecânica é simples: o recrutador estabelece requisitos, a plataforma lhe retorna candidatos que preencham aqueles requisitos. Muita gente tem a sensação de estar sendo preterida porque sua idade está fora dos limites estabelecidos ou simplesmente porque deixou de incluir alguma palavra-chave. Real ou não, essa sensação começa a instalar-se como verdade – como só acontecer em mudanças não geridas – e gera um viés negativo para as transformações que estão por vir, reforçando a insegurança psíquica.

Por que então essas plataformas tomaram o mercado? Pelo mesmo motivo que aplicações de inteligência artificial também o vêm tomando em outros setores: aumentam muito a produtividade, pois lidam rapidamente e sem erros com grandes quantidades de dados, e liberam as pessoas para tarefas menos braçais. A demanda por produtividade e eficiência está instalada no mundo corporativo desde sempre e o RH não é exceção – pelo contrário, deixar de usar a tecnologia disponível em tempos de transformação digital é arriscar-se a ser visto como obsoleto. E, se o setor é obsoleto, é porque as pessoas que ali trabalham também o são.

Mas quais são as tarefas mais ou menos braçais? Devemos realmente transferir essas tarefas a aplicações de inteligência artificial? Se no mundo pré-IA designávamos pessoas mais jovens para tarefas mais simples como maneira de formá-las paulatinamente na profissão, no processo conhecido como on the job training, como as formaremos daqui em diante? Que lacunas podem estar-se criando na formação dos profissionais e quais serão as consequências futuras? Podemos fazer algumas inferências a partir da observação dos jovens que estão a ingressar atualmente no mercado de trabalho. Estes jovens foram criados com muita tecnologia à sua disposição durante os estudos e trazem características particulares, tanto em relação ao que sabem ou não sabem quanto em relação a como reagem a situações no ambiente de trabalho – como respondem a estabelecimento de metas, pressão por resultados e outros aspectos. Provavelmente as lacunas, se as houver, só serão percebidas quando já estiverem a causar consequências – isso se a contratação de profissionais juniores seguir a ritmo inalterado, pois, se eficiência é medida em dinheiro, diminuir a quantidade de funcionários é impacto direto no resultado financeiro imediato. Os funcionários seniores fazem o trabalho de inteligência e a IA faz a parte braçal – que ideia simples e efetiva! Parece-lhe familiar? Não à toa temos uma massa de jovens desempregados e desestimulados.

Deitemos então um olho ao profissional sênior. Fazer a reunião e não precisar preocupar-se com a elaboração da ata parece um sonho. Que tarefa enfadonha registar tudo o que foi dito! – as ações que se determinou tomar, responsáveis e datas. Fazê-lo depois da reunião terminada traz o risco de que alguém se manifeste: “não foi isto o que acordamos”; fazê-lo durante as discussões pode dar a sensação de que se está a perder tempo com burocracia, ainda que seja saudável nivelar o entendimento, pois, afinal, o que se busca é efi- ciência. Então que a IA se encarregue. Terminamos a reunião mais rapidamente e estamos liberados para a próxima tarefa “nobre”, inteligente, que nos exige alto grau de foco. Ao término de um dia em que todas as tarefas exigiram plena concentração e não houve momento em que se pudesse relaxar o cérebro executando as tais tarefas enfadonhas, a sensação muitas vezes é de esgotamento. Dia após dia nesse ritmo e está pintado o quadro que a OMS identificou: a síndrome de burnout está à volta da esquina.

Então o que fazer? É melhor banir a IA do mercado? A verdade é que a entrada da IA no mundo corporativo é inexorável. Resistir a essa mudança é um processo doloroso e infrutífero. Resta-nos lidar com as consequências, maximizando oportunidades e mitigando ameaças. E, para o setor de RH, a oportunidade é grande.

Vivemos numa época de mudanças muito rápidas em nível tecnológico e cultural. Até mesmo coisas que sempre demos como certas, como a disponibilidade de ar e água, estão a mostrar-se não tão certas. Precisamos reduzir o consumo, mas vender mais. Temos que ser ambientalmente sustentáveis, socialmente inclusivos e conduzir-nos com ética e transparência, tanto individual como coletivamente, desde que a rentabilidade continue a aumentar. Estamos sempre a julgar e ser julgados uns pelos outros nas redes sociais. Estamos expostos como nunca a pressões (ainda que autoimpostas) e a ciência luta para destrinchar o emaranhado de problemas contemporâneos de saúde mental. A chegada das aplicações de inteligência artificial é mais uma gota (e que gota enorme!) nesse oceano e, voltando ao conceito de Daryl Conner que trazíamos no início deste artigo, mais um ponto a desafiar nossa capacidade de absorver mudanças. Quando começam a ocorrer conflitos com mais frequência ou aumentam os casos de ausência por problemas de saúde mental, é o RH que entra em cena para conter os danos. O que se pode fazer nesse sentido?

A chave está na gestão de mudanças e na metodologia do HUCMI® – Human Change Management Institute -, que traz um conjunto de técnicas e ferramentas muito útil para esse programa de transformação. O RH pode trazer à tona o problema, com fatos e dados (horas de ausência por licenças de saúde, horas gastas em gestão de conflitos, impactos ao clima organizacional etc.) e propor um programa de gestão da cultura que leve à sua solução. O apoio do Financeiro é importantíssimo para traduzir em dinheiro tanto o problema quanto os resultados esperados com o programa. A comparação entre o investimento no programa e os benefícios que ele trará é o que determinará sua execução ou não.

Partindo de uma análise fria da cultura organizacional e tendo em foco objetivos relacionados à promoção do trabalho produtivo e saudável, pode-se elencar quais elementos da cultura contribuem para o compromisso dos funcionários e quais podem constituir fatores de antagonismo, maximizando os primeiros e mitigando os últimos. Processos participativos para decisão quanto à adoção de determinadas tecnologias, clareza sobre a contribuição de cada funcionário para a conquista dos objetivos estratégicos da empresa e reconhe- cimento dos que estiverem a obter bons resultados são técnicas interessantes. É importante determinar o que são bons resultados na visão de uma cultura transformada e quais são os novos indicadores que demonstrarão o atingimento desses resultados, pois se usarmos os indicadores de sempre, obteremos os mesmos resultados de sempre. Também devemos selecionar antecipadamente os processos decisórios que podem ser conduzidos ou não de forma participativa, quais impactos organizacionais podemos esperar com a condução do programa e vários outros aspectos relacionados tanto ao fator humano quanto aos resultados de negócio. Em suma, há que se elaborar um PEGM – Plano Estratégico de Gestão da Mudança – e aprová-lo junto à direção da empresa para obter o patrocínio explícito e inequívoco ao programa.

Ainda que as mudanças no mundo em que vivemos tornem-se ainda mais aceleradas, há um ponto que permanece imutável: tudo o que fazemos é para as pessoas. Desde postar vídeos numa rede social até buscar a cura do câncer, passando por fabricar armas e modificar sementes geneticamente, tudo tem como destino servir às pessoas. Num ambiente onde há tanta pressão, tanta disfuncionalidade e tantas consequências à saúde mental, nada mais necessário do que cuidar de pessoas. O RH é a área corporativa por excelência para exercer esse cuidado e a gestão de mudanças organizacionais é o veículo para exercer esse cuidado da forma mais efetiva.

(Este artigo foi escrito em Português do Brasil)

 

Veja abaixo a entrevista complementar:

 

Fabio Teixeira de Melo
Gestor de projetos e mudanças organizacionais Sócio Diretor – Alia Futura

Descarregue aqui a 20ª Edição da Revista Game Changer

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